Começar o dia com uma aula de literatura pode ser um momento imensamente agradável se a opção for transformar este tempo em algo proveitoso. Estive a definir desde o início das aulas que as faria de forma que fossem agradáveis e que trouxessem a aprendizagem de uma forma leve e fluída. Levar aos alunos alguns autores "esquecidos" e fazer com aprendessem mais dentro de um universo tão vasto e enriquecedor.
Sessão de leitura e atividades com cada crônica pode estimular a aprendizagem e trazer um bom ambiente. Há que se aprender todos os dias a dar aulas mais dinâmicas e perceber que os alunos apreciam este tempo que passam num encontro com a literatura.
Aqui deixo uma crônica de Augusto Abelaira, uma das mais belas crônicas que transmitem muita emoção. Deixe-se levar pelos mais belos sentimentos e por um autor que traduz em palavras tanta sensibilidade.
ESCREVER NA ÁGUA
Carlos
Não me importa
agora que Carlos de Oliveira fosse o autor de algumas das mais belas poesias da
língua portuguesa. Nem que tivesse escrito o mais misterioso e envolvente dos
nossos romances. E isto nunca lho disse. Um pudor absurdo? Cheguei a afirmar
publicamente (mas a ele, nunca) que considerava Finisterra
(ou, melhor, Finisterra: paisagem
e povoamento, ele irritava-se que lhe cortassem o título) o melhor
romance português dos últimos 30 anos. Mas não era verdade – e só o tal pudor
impediu que dissesse: de toda a literatura portuguesa (e não esquecendo Os
Maias). Coisa que percebi imediatamente após a leitura da prova
amorosamente dactilografada pela Ângela em papel azulado. Porque não lho disse
se o sentia? Que pudor é este? Talvez não somente pudor, o receio da ironia
dele: Você é uma pessoa muito amável e não acreditaria,
pensaria que eu estava a lisonjeá-lo. E eu não queria que ele pudesse pensar
isso de mim. Para ele era mais verossímil uma admiração modesta, ele não tinha
verdadeira consciência do livro que escrevera. Rendi-me à falsa verossimilhança.
Mas não importa
isso agora, repito, porque mais importante me parece o amigo. E recordo-me de
que, com a minha estúpida mania de brincar com coisas sérias, declarei recentemente
a um jornal: Não tenho amigos. A hipócrita tentativa de ouvir alguém protestar,
de ouvir o próprio Carlos de Oliveira? E estou a ver o rosto magoado,
profundamente magoado, dele, quando no dia seguinte o encontrei. Você não
será amigo de ninguém, é lá consigo, mas há pessoas que são suas amigas e você
não tem o direito de falar como falou. Desejei meter-me pelo chão abaixo, o
Carlos de Oliveira era um pouco a voz da consciência, uma consciência que se
amava e que se temia. Um desses amigos capazes de sofrer pelos outros. Com os
outros.
Mas agora?
Carlos de Oliveira era uma das três pessoas com quem eu me habituara a
conversar na própria ausência delas. O interlocutor de certos momentos quando
eu estava sozinho. Quando escrevia um livro (que pensará o Carlos de
Oliveira?). Quando via um bom filme (ele que não ia ao cinema). Quando lia um
bom livro. Até quando amava. Sim, que pensará o Carlos de Oliveira? E apesar de
vê-lo todos os dias conversava mais com ele quando não estava com ele.
Com quem vou
agora conversar quando estiver sozinho, agora que das três pessoas com quem
conversava em silêncio já outra morreu alguns tempos antes? E penso nas tantas
coisas que lhe disse em silêncio, mas que não me atrevi a dizer-lhe na
realidade.
Uma porção de
coisas que andavam a afogar-se e que só a ele poderia confessar.
Recentemente
fizemos uma aposta. A esquerda ganharia ou não em França? Céptico, eu dissera
que não. Ele, que sim. Perdi a aposta que era um jantar. E íamos jantar num dia
destes – ainda na terça-feira falámos nisso. Eu decidira ter a tal conversa,
pôr em dia as muitas conversas que com ele tivera não tendo. A fascinação de
pôr a alma a nu - a certeza de que só ele me saberia ouvir com esse misto de
ternura e de ironia que tanto o caracterizava, a sua generosidade sem mácula, a
sua prodigiosa capacidade de compreender sentindo-me se aproximar discretamente
de nós. O seu conselho. A sua amizade.
Mas agora não é
mais possível (continuarei decerto a falar com ele, mas na ausência
definitiva). E como se fala com um amigo que se sabe que já morreu, como será
possível manter esse teatro?
Quanto os
livros... Que importa um livro, mesmo um grande livro, comparado com um amigo
generoso?
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